domingo, 3 de julho de 2011

Tenho vontade de lágrimas

POIESIS.AGENDACOMPARTILHADA

Pequena Rua dos Cataventos Para Crianças Pequenas

“Toda literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as
impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem, e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “Tenho vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase,absolutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer,refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da
amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas”!Aquela criança pequena definiu bem a sua
espiral.” (Pessoa, 2006, p. 28)

Há duas semanas atrás, fui conversar com quatro turmas de crianças bem pequenas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Anísio Teixeira, aqui de Porto Alegre, a convite de Denise Maia, uma jóia de educadora, Supervisora da Escola. A Escola estava homenageando Mário Quintana em sua Feira do Livro: vejam só!
Senti-me tão honrada com o convite, que peguei o saco de “Cataventos , a Lili inventa o Mundo, o Sapo Amarelo” e lá fui, sorrisão feliz, fazer uma Pequena Rua dos Cataventos com as Crianças Pequenas daquela Escola. Vocês conseguem imaginar minha alegria e meu orgulho? Pois sim, sei que conseguem. É só imaginar uma guria que desde a 3ª série lê Quintana, mas que foi amá-lo na 5ª série com a professora Teresa, lá no Freitas Valle, e que apaixonou-se por ele ao apaixonar crianças de suas 1ªs séries, e que depois virou adulta, e mais madura, e viciou em Quintana vida afora. E que lá pelos 100 anos de Mário, já quarentona,( e com outras quarentonas juntas – porque isso não é coisa de se fazer sozinha) foi brincar com a Poesia dele no meio da Praça, por dois dias, só para contar para outras e mais outras crianças quem ele era, não só como alegretense, mas como poeta e maravilhoso literata inventor de palavreados sedutores e engraçados que ninguém consegue fazer igual até hoje. Pois é. Não é difícil, então, vocês imaginarem minha alegria em tendo em Quintana um amor, e tendo nele meu candidato a uma paixão e esperança de tornar-me candidata dele também (desconhecida) depois de Bruna Lombardi e Sofhia Loren!
Fui até a Escola, montei a Rua dos Cataventos improvisada debaixo de um ventilador de teto, e juntando-me a *ele, Mário, que estava sentado, datilografando, em uma escrivaninha (*um boneco tamanho gente, lindo e sósia dele), coloquei-me a conversar com as crianças, a brincar com as poesias e a ensinar as crianças a brincar com as poesias de Mário. Que manhã voadora! As horas passaram e eu não as senti, embebida pelo interesse das crianças em saberem mais de Mário e em fascinarem-se com sua poética alegremente debochadinha e surpreendente. Aquelas pequenas crianças me ensinaram pequenas virtudes. Uma delas: homenagear as pessoas simplesmente, sem precisar que façam 50 anos ou 100 anos ou Bodas disso ou Bodas daquilo. Outra virtude: sentar no chão faz bem. Principalmente, com um livro na mão.
Depois que saí de lá, fiquei pensando como perdi quando distraí-me da poesia de Mário, por alguns poucos tempos! Fiquei pensando o quanto perderam todos aqueles que constituíram preconceitos com Mário Quintana, e deixaram de ler sua criatura fantástica! Fiquei pensando em todos aqueles que nunca deram valor a um verso seu, nem leram uma linha só, nos que não acreditaram em sua arte por ela não ter brilhos e paetês e fazer-se tão simples e tão singela e tão simples e tão singela e nos que não acreditaram nele por ele ser tão pobre e tão sem nem um castelo sequer, e só nos hotéis morando de emprestado, sem nada de material para converter em famas e posições e status e todas estas coisaradas que o capitalismo inventou e deu o nome de Felicidade. Fiquei pensando naqueles Oh! daquelas crianças da Escola Anísio Teixeira, a cada vez que eu rimava de pé quebrado o gato preguiçoso da segunda-feira ou a galinha que a Lili não queria comer de dó! Quanta diferença entre o mundo das crianças pequenas e de uma Rua dos Cataventos e o mundo dos adultos atrapalhados com seus bens, seus luxos fúteis e seus status quo.
Bendito Mário, que vivo fazia a gente suspirar de poesia, e que morto, faz a gente continuar suspirando de poesia. Bendito Mário que me ensinou o que é poesia, o que é liberdade, o que é autonomia na escrita poética. Que me ensinou que escrever não está à venda, que não precisa ser escravo de rima, que posso escrever como bem entender, que posso fazer poesia com uma minúscula formiga.
Bendito Mário! E Bendita eu, Bendito tu, Bendito nós, Bendito vós, Bendito todos e todas que se libertam, e ao se libertar, libertam outros e outras pelas palavras!

Ana Felicia Guedes Trindade
Mestra em Educação PUC/CAPES
Doutoranda em Educação PUC/CAPES
Professora da Rede Municipal de Educação de Porto Alegre

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